28 abril, 2006

Felicidade


De mais um diálogo de Platão, dessa vez o Symposium (O Banquete):
For here is the way it is: no one of the gods philosophizes and desires to become wise - for he is so - nor if there is anyone else who is wise, does he philosophize. Nor, in turn, do those who lack understanding philosophize and desire to become wise; for it is precisely this that makes the lack of understanding so difficult - that if a man is not beautiful and good, nor intelligent, he has the opinion that that is sufficient for him. Consequently, he who does not believe he is need does not desire that which he does not believe he needs.
Se o homem sapiente não precisa da filosofia precisamente por já ser sapiente, e se o ignorante não a usa por achar que dela não precisa, quem, então, deverá lançar mão da filosofia? O homem que não é nem sapiente nem ignorante, claro está. A essa primeira gradação se associa uma segunda, que deriva da anterior e da qual Platão também fala: a existência da verdade absoluta, da opinião correta e da opinião incorreta. Não há dúvidas de que, em termos práticos, a opinião correta nos será tão útil quanto a verdade absoluta, mas o descompasso não deve deixar de existir: confundir os dois é um equívoco não de todo incomum nos cientistas mais audaciosos. O modelo (opinião) pode estar correto, mas ele não tem autoridade para explicar a origem mesma do fenômeno.

Olavo de Carvalho subscreveria (ou subscreve) com entusiasmo o trecho citado: afirma com frequência que uma crise intelectual torna-se menos perceptível à medida que progride em seu tortuoso caminho. Realmente, difícil discordar. Se, supondo que não nos seja dada a oportunidade de conhecer a verdade absoluta, convém sermos capazes de ao menos formular opiniões tão corretas quanto possível. Que dizer, então, da seguinte definição de felicidade, dada por Fernando Pessoa e citada por Reinaldo Azevedo na edição de abril da Primeira Leitura?
Tenho dó dos pobres. E também tenho dó dos ricos. Tenho mais dó dos ricos porque são mais infelizes. Quem é pobre pode julgar que, se deixasse de o ser, seria feliz. Quem é rico sabe que não há maneira de ser feliz. Quem é pobre tem uma só preocupação, ou uma só preocupação principal: a pobreza. Quem é rico, como, infelizmente, não tem essa, tem que ter todas as outras. Nunca vi homem rico mais feliz que um pobre; a não ser que por felicidade se entenda aquilo que se pode comprar no alfaiate e no ourives, e comer-se num restaurante (...). Os pobres são felizes: têm uma ilusão - crêem que o alfaiate, o ourives, o dono do restaurante caro são os dispensadores de felicidade. Crêem nisso. Os ricos são os ateus do alfaiate.
Além de dizer que os pobres são mais felizes por terem uma opinião errada, Pessoa (Campos) é conhecido por nos assegurar que não é nada nem pode querer ser nada, apesar de ter em si todos os sonhos do mundo (versos citados mais pelo caráter aparentemente contraditório que por qualquer resquício de entendimento ou concordância honesta). Mais adiante, no mesmo poema, diz que Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade. Mais adiante ainda, completa: Vivi, estudei, amei, e até cri / E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu. O fardo que advém do conhecimento ou da responsabilidade não é nenhuma novidade, além de se manifestar de várias maneiras: no entender de Kipling, temos o white men's burden; no entender de Campos, o thinking men's burden. Contrapõem-se, concluimos, à visão de Platão. Essa parece ser uma conclusão precipitada.

Em primeiro lugar, há que diferenciar o individual do coletivo: quando Olavo de Carvalho fala em crise intelectual, evidentemente não se refere a indivíduos esparsos que se contentam e se refestelam em sua própria e confortável ignorância. Que se pode fazer quanto a isso? Quem nunca se sentiu tentado a fazer precisamente isso? Problema é quando todo um 'país', com toda a legitimidade real ou aparente que costumamos conferir a qualquer unanimidade, chega a um estado vergonhoso de falta de senso comum e, o que é pior (além de perigoso), esbraveja aos quatro ventos que está inalienavelmente certo. Além disso, reconheçamos o óbvio: há motivos para acreditar (não apenas por se tratar de poesia) que Pessoa não invejava mendigos, assim como para acreditar que talvez Voltaire não se dispusesse a morrer pela liberdade de expressão de cada um.

Se ele invejava ou não mendigos pouco importa: o que vale é a idéia expressa. E ainda assim se observa mais concordâcia que contraposição com o trecho de Platão. Sócrates (Platão) também sabe que não é nem pode querer ser nada, pelo menos nessa vida. Ele afirma que the unexamined life is not worth living ao mesmo tempo que admite que não é possível examiná-la até o fim. O desalento de que se queixa com tanta eloquência Álvaro de Campos não é menos intenso em Platão, com a diferença de que, para este último, não se trata de desalento, mas sim da condição primeira para uma existência verdadeiramente digna.