07 abril, 2006

O Gigante Chesterton


Já citei G. K. Chesterton aqui antes. Não é à toa: se há necessidade de sintetizar ou rematar uma idéia qualquer elegantemente, cita-se Chesterton. Um livro de Chesterton se assemelha a uma compilação de aforismos (não quaisquer aforismos), e não se trata de exagero.

Essa observação pode parecer hagiográfica por um lado e, por outro, redutora. Redutora porque hoje qualquer um escreve aforismos; juntam-se quatro ou cinco palavras de efeito e chegamos a um resultado supostamente genial. Uma coisa é certa: aforismos são válidos por serem pelo menos uma de duas coisas: intrinsecamente verdadeiros, isto é, traduzem a realidade da maneira mais abrangente possível; ou, se não são tão facilmente aplicáveis ao mundo palpável, são louváveis por economia: dizem o que normalmente se diz em várias linhas, sem perda de nuances. Se não soam universalmente procedentes, que sejam ao menos esteticamente estimulantes.

Chesterton une essas duas características, mas dá prioridade à primeira. A impressão que se tem (logo a primeira) é que há um compromisso inalienável e irrevogável para com a verdade. O compromisso seria pouco se não houvesse a perspicácia para percebê-la; Chesterton surpreende a verdade como Drummond pretendia surpreender a poesia: altiva, total, apenas esperando que alguém a venha resgatar. Chesterton resgata-a sempre e, o que é mais, ela comumente se opõe ao que consideramos mais trivial e axiomático.

É por isso que se diz que Chesterton escreve por paradoxos: vá lá, mas os paradoxos não são criados por ele. É alarmante o número de instâncias em que a verdade (ou pelo menos a verdade de Chesterton) é contradita serena e sistematicamente pelo consenso geral. Não há culpa em perceber isso; seria como culpar um astrônomo por ser excessivamente observador, ou um matemático por ser excessivamente rigoroso. Deturpações as mais grosseiras advêm, não raro, de um erro aparentemente inofensivo que, nada obstante, alastra seus pseudópodos ad infinitum até que nada sobre de aproveitável no raciocício original. Bom exemplo disso é a acepção que muitos consignam à entidade povo, da qual se fala como se fosse uma massa amorfa e indiferenciada, incapaz de qualquer decisão que corrobore a mais superficial das intuições. Se há restrições a fazer a essa percepção, que dizer de alguém que, logo após aceitá-la, usa-a como vias de legitimação da participação do mesmo povo no processo de tomada de decisões? Diz Chesterton:
It fills me with horrible amusement to observe the way in which the earnest Socialist industriously lays the foundation of all aristocracy, expatiating blandly upon the evident unfitness of the poor to rule. It is like listening to somebody at an evening party apologising for entering without evening dress, and explaining that he had recently been intoxicated, had a personal habit of taking off his clothes in the street, and had, moreover, only just changed from prison uniform.
E por que não nos divertiremos, nós tambem, com essa constatação? Surge num repente a pergunta: Por que não pensei nisso antes?, ou, melhor ainda, Por que o mundo inteiro não pensou nisso antes? Não vão faltar ocasiões em que essa mesma pergunta poderia ser feita; a cada página Chesterton nos mostra o óbvio, e a cada página nós nos surpreendemos com ele. É como se a própria obviedade encerrasse toda a verdade dentro duma casca intransponível.

Dá-se prioridade à primeira característica (o compromisso com a verdade), mas a questão estética não é deixada de lado; em verdade, dada a assiduidade com que escrevia, mais justo seria dizer que se trata de um aspecto quase tão admirável quanto o primeiro: há em seus textos a característica daquilo que foi meditado à exaustão; nada falta, nada sobra. A qualidade de cada linha é incorruptível, algo raro até nos maiores escritores. Surge inclusive a dificuldade de escolher o que citar de seus escritos; conviria citar artigos inteiros. Conviria lê-lo sempre.

Cito, então, um trecho escolhido a esmo do Orthodoxy:
Thoroughly worldly people never understand even the world; they rely altogether on a few cynical maxims which are not true. Once I remember walking with a prosperous publisher, who made a remark which I had often heard before; it is, indeed, almost a motto of the modern world. Yet I had heard it once too often, and I saw suddenly that there was nothing in it. The publisher said of somebody, "That man will get on; he believes in himself." And I remember that as I lifted my head to listen, my eye caught an omnibus on which was written "Hanwell.*" I said to him, "Shall I tell you where the men are who believe most in themselves? For I can tell you. I know of men who believe in themselves more colossally than Napoleon or Caesar. I know where flames the fixed star of certainty and success. I can guide you to the thrones of the Super-men. The men who really believe in themselves are all in lunatic asylums." He said mildly that there were a good many men after all who believed in themselves and who were not in lunatic asylums. "Yes, there are," I retorted, "and you of all men ought to know them. That drunken poet from whom you would not take a dreary tragedy, he believed in himself. That elderly minister with an epic from whom you were hiding in a back room, he believed in himself. If you consulted your business experience instead of your ugly individualistic philosophy, you would know that believing in himself is one of the commonest signs of a rotter. Actors who can't act believe in themselves; and debtors who won't pay. It would be much truer to say that a man will certainly fail, because he believes in himself. Complete self-confidence is not merely a sin; complete self-confidence is a weakness. Believing utterly in one's self is a hysterical and superstitious belief like believing in Joanna Southcote: the man who has it has 'Hanwell' written on his face as plain as it is written on that omnibus."
* Hospício, perto de Londres.