11 março, 2008

Há o Almoço

Espanta-me a frequência com que tento imaginar o gosto da comida dos livros que leio. Pouco importa o nível de sofisticação: lembro ter fantasiado com o café da manhã dos retirantes de The Grapes of Wrath (café amargo em caneca surrada de alumínio, pão recém-cozido com manteiga etc.; as frutas da California me parecem deliciosas até hoje, apesar de eu não gostar muito de frutas) tanto quanto com os jantares suntuosos de Jacinto (lagosta, vinho caro, peixe da Dalmácia etc.) em A Cidade e as Serras. Realmente são muitas as referências a comida nesse último livro; em algum momento o narrador diz ser a vontade de almoçar a mais longeva das paixões. E é.

Todos se lembram de como Bentinho jantou bem logo após receber notícia da morte do 'filho'. Come-se bem em velórios nos EUA; fui a um e a comida estava ótima. Em rituais expiatórios, quando a situação não é crítica e não há necessidade de sacrificar a mais bela virgem ou algo do tipo, oferece-se comida aos deuses. Parece que nem eles deixam de se animar com a perspectiva do almoço. Falando nisso, o mortal pagão podia conseguir a imortalidade comendo ambrosia.

É curioso, então, que algo tão simples quanto comer carne seja encarado com desconfiança justamente numa época que se quer tão liberal. Parece que comer carne vermelha, mal passada e com aquela velha gordurinha, é aviltante para o corpo humano, mas ser sodomizado nem tanto. Algo que foi observado por todos os críticos da onda vegetariana é que, à medida que se procura alçar o animal ao nível moral do homem, resiste-se toscamente à tentação de rebaixar o homem ao nível atual do animal. É como no princípio dos vasos comunicantes, quando não há mais diferença de pressão entre os ramos: o nível mais alto desde e o mais baixo sobe para um nível intermediário. Eis aí uma conclusão insofismável: o fim do churrasco é sintoma de decadência moral.

Mais que um preconceito contra o consumo de carne, o vegetariano radical (desconheço a nomenclatura, façam-me o favor) parece se opor ao ato mesmo de comer. Quando o fazem -- até porque, ainda que não pareça, também sentem fome -- ficam encolhidos, como que dizendo "desculpem, é necessário, mas vejam que estou fazendo direitinho". Todos eles se opõem a redes como McDonald's e Burger King with a vengeance porque, além de serem nojentas, entronizam bem o espírito capitalista.

Um colega que acaba de retornar do interior de Nevada se diz assustado com a obesidade mórbida de muita gente de lá. Alguns são tão gordos que se deslocam em carrinhos motorizados, providos, é claro, de um espaço no painel para a bandeja do self-service. O fato de eles existirem não me assusta, já que a gula é tão velha quanto o homem; assusta o fato de eu já ter motivos para admirar-lhes a coragem.