22 junho, 2007

Kafka e o Moderno Geômetra

O maior desserviço que se pode fazer a uma criança é dar-lhe um livro do Kafka. Lá nada faz sentido. Tudo bem que cachorros falem ou que objetos inanimados tenham vontade própria; as crianças estão todas muito bem acostumadas a esse tipo de coisa. O problema é que, em Kafka, os cachorros não falam como esperávamos que falassem. E isso é desconcertante.

Esse desconcerto é quase sempre o responsável pelo fascínio que a primeira leitura de Kafka exerce sobre nós. Não sabemos ao certo do que se trata, mas a identificação é imediata. É como se ele fingisse conhecer uma verdade que desde há muito procuramos. A constatação de que essa é uma verdade também nossa justifica a terminologia tão cara aos críticos: livro moderno, autor moderno.

É realmente moderno o mundo de Kafka. Estranho que seja moderno ou atual, já que, a princípio, parece primar pela absurdidade: pra começar, nele o tempo está sempre nublado. Já perguntei isso a umas três pessoas e todas parecem concordar que o sol atrapalharia o andamento de qualquer história tipicamente kafkiana. Tudo é difuso, nebuloso; a calçada está sempre coberta de neve, a neblina impede que se veja o contorno das coisas com precisão. Características físicas são de todos prescindíveis: o máximo que sabemos de Frieda é que é magra e gasta; tão pouco ou menos sabemos de Josef K., protagonista de O Castelo, e de K., protagonista de O Processo. As cidades não têm nome. Quando Frieda sugere a idéia de fugir para Portugal ou Espanha, causa estranhamento o fato de esses dois lugares ainda existirem.

Outra particularidade é o não saber a quem recorrer. Num conto de fadas, há sempre a possibilidade de temer a bruxa ou a rainha malvada. Podemos ser acometidos por uma maldição terrível, mas temos uma idéia de quem foi o responsável, assim como temos uma excelente idéia de quem poderia nos ajudar. Em Kafka, está-se sempre sozinho. No meio de uma complicação judicial, a probabilidade de K. vir a ser auxiliado pelo pintor, ou pelo padre, ou pelo próprio advogado, é sempre a mesma: nenhuma. A existência de regras a que podemos apelar é, para Ortega y Gasset, uma das características básicas de qualquer grupo civilizado. Não vendo necessidade para regra nenhuma, Kafka reduz todos seus personagens à barbárie.

Num estudo sobre o Kafka (Kafka's Afflicted Vision: A Literary-Theological Critique, clicar aqui para ler), George A. Panichas fala da ausência de regras como a ausência de 'centros':
The Castle offers us, above all, a centerless world, in which its inmates are like shadows in the land of death. One critic, Zadie Smith, in an admirable commentary titled in Kafka’s own words found in his diary entry dated March 30, 1913, “The Limited Circle Is Pure,” observes: “... Kafka has no center. Kafka avoided every telos, all termini, purposes, meaningful endings, and resting spots. ...”
Kafka é o moderno geômetra: aquele que não precisa de centros. Curiosamente, o primeiro capítulo do Imagens e Símbolos, do historiador das religiões Mircea Eliade, chama-se simbolismo do "centro", um simbolismo que se repete com frequência nas mais diversas religiões. A mentalidade religiosa sente a necessidade de conferir um aspecto privilegiado àquilo que lhe é mais caro: numa tentativa de separar claramente o sagrado do profano, faz de sua casa, ou do símbolo maior de sua religião, o "centro" do mundo. O "centro" é tudo aquilo que realmente importa, é o que de fato existe, e não lhe estranha a possibilidade de haver vários centros para um mesmo mundo. Uma perspectiva mais moderna admite a existência de um centro apenas, mas que estranho seria se ele não existisse! É o que Kafka, moderno e radical, faz: suprime toda e qualquer idéia de centro.

Não é à toa que todos seus personagens estão sempre perdidos; não têm como se orientar. K. perde horas em conversas extenuantes que não levam a nada, quando não o deixam ainda mais confuso. Panichas lembra, com razão, que uma de nossas primeiras reações ao ler O Processo, por exemplo, é de compaixão por K. Sentimos a dificuldade de sua situação e não escondemos nossa simpatia. O que não nos ocorre com tanta frequência é a constatação de que K. merece sua vizinhança: quando não está conformado deixa clara sua incapacidade para transcender o problema. Em verdade, K. não parece ser muito diferente dos agentes que o oprimem; se tivessem de trocar de lugares, é bem provavel que K. aceitasse de bom grado sua nova incumbência.

Não existem saídas ou é apenas K. que não consegue enxergá-las? Poderíamos perguntar o mesmo do próprio Kafka.