The pervasive irony (or allegory) of Dante's work is that he professes to accept limits even as he violates them. Everything that is vital and original in Dante is arbitrary and personal, yet it is presented as the truth, consonant with tradition, faith, and rationality.É com essa passagem de Harold Bloom, tirada de seu The Western Canon, que Vasco Graça Moura, tradutor dessa edição de La Divina Commedia, começa sua introdução. Acresce que a citação, que serve de epígrafe à introdução juntamente com alguns versos de José Ramos-Coelho, não será comentada nas quase vinte páginas que lhe seguem. Finda a leitura, reconhece-se o porquê: é uma observação que se verifica em cada um dos cem cantos desta obra. Sempre que Dante (o personagem) tem alguma dúvida referente àquilo que presencia no momento, recorre à intervenção de alguém (Virgílio no Inferno e no Purgatório, e Beatriz no Paraíso; mas são muitos os vultos históricos que aparecem para instruir e para elucidar as dúvidas de Dante) cuja sabedoria é - somos levados a crer constantemente - inquestionável. Os que duvidam serão fatalmente desmentidos:
E já Dinis com tais desejos seusÉ o que diz Beatriz, no canto XXVIII do Paraíso, acerca da hierarquia dos anjos.
ordens a contemplar assim se pôs,
em distinções e nomes como os meus.
Mas Gregório mais tarde se lhe opôs;
onde, tão cedo os olhos seus abriu
a este céu, de si se riu após.
E se verdade oculta proferiu
assim mortal na terra, não admire;
que quem a viu cá no alto a descobriu
com muita outra verdade que aqui gire.
Nesse processo, Dante leva adiante uma vasta recapitulação da doutrina cristã, além de, sempre que possível (e não são poucas as ocasiões), tratar da História, antiga e contemporânea, de Florença, sua cidade natal. Curiosamente ou não, é no Inferno que Dante encontra grande parte dos célebres florentinos já mortos à época (1300), acompanhados, em sua infernal morada, pelos muitos papas que Dante faz questão de atacar furiosamente (Nicolau III, Bonifácio VIII, Clemente V etc.) Não é apenas Dante-personagem que concorda com Dante-autor; também o fazem os danados, os fadados a purgar durante anos por seus pecados e, está claro, os bem-aventurados. É toda essa multidão de personagens históricas, de filósofos antigos, de homens e de mulheres, de almas e de anjos. Esse é um fim a que somos levados inescapavelmente: confundir a voz de Dante com a voz da tradição, da fé e da racionalidade.
A construção desse mundo tradicional e racional é levada a cabo com uma precisão literalmente matemática: o Inferno nos é apresentado como um cone invertido, em cujo vértice se encontra o próprio Lúcifer; o Purgatório é também um cone, mas dessa vez em sua posição usual; o Paraíso, como não poderia deixar de ser, é composto por uma sucessão de círculos luminosos concêntricos que remete à mais perfeita das simetrias, a saber, a da esfera. Paralelamente à jornada que leva à redenção de Dante (ou de toda a humanidade, como gostam de afirmar), a Comédia representa um passeio pelas mais diversas áreas do conhecimento; a facilidade com que Dante organiza argumentos filosóficos, alusões mitológicas, dados históricos (além de passagens pela Astronomia, Geometria, Psicologia, Música etc.) - os quais muitas vezes se misturam num mesmo terceto -, confere-lhe uma riqueza de possibilidades para metáforas e comparações aparentemente interminável. O mundo de Dante torna-se, assim, completo, e loucura seria negar sua coerência interna.
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Uma nota final, a respeito da tradução: Carpeaux dizia que uma tradução realmente bem acabada deveria resultar num texto que, na língua a que vai ser vertido, representasse uma leitura tão difícil quanto era, para os leitores da língua primeira, o texto original. [Referia-se ao Ulisses de James Joyce.] Pois bem, a tradução de Graça Moura realmente não parece diminuir a 'dificuldade' da Comédia; de fato, ele afirma que:
De outro modo, seria obrigado à mais perigosa das perífrases: a de transpor para o corpo do texto o que constitui matéria substantiva das anotações nas edições comentadas, desvirtuando a materialidade original, sacrificando ambiguidades e polissemias que nela se contêm, desdobrando explicativamente o que no texto de Dante se encontra concentrado, enfim, pondo em risco de curto-circuito a sua própria carga poética (...)Essa observação parece ser suficiente para desacreditarmos qualquer tradução que não siga fidedignamente o roteiro imposto pelo português e também poeta Vasco Graça Moura.
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