Desta vez com Cecilia Meireles, uma grata redescoberta. Romanceiro da Inconfidência deve ter surpreendido os contemporâneos pela forma relativamente comportada -- os 'romances', 84 neste romanceiro, são feitos em redondilhas (versos de 5 ou 7 silábas) com rimas nos versos pares. A forma medieval cabe bem: a temática épico-lírica é o de que Meireles precisava para narrar uma sublevação que, em tese ao menos, foi também épica (em se tratando de história brasileira, sabemos que não é bem assim). A declamação dessas composições era usualmente acompanhada por instrumentos musicais, daí a necessidade da rima.
O tema apequena o livro, é claro, mas está longe de estragá-lo. O que há de épico no alferes Tiradentes é não tanto sua coragem, que não chego a questionar, quanto sua precipitação. Quando a derrota já está certa, o poeta nem sequer pode lamentar a força do adversário, condição necessária para um embate honesto: lamenta (ou deveria lamentar) o despreparo e a mesquinharia do grupo de revoltosos. Não à toa meus romances preferidos nada têm que ver com o enredo em si. Vamos a um deles:
Romance LXXIV ou Da Rainha Prisioneira
Ai, a filha da Marianinha!
Ai, a neta do Rei D. João!
- suave princesa de maõs postas,
resplandecente de oração...
Que lindas letras desenhava
a sua delicada mão:
grandes verticais majestosas,
curvas de tanta mansidão!
MARIA - nome de esperança,
MARIA - nome de perdão,
- a melancólica princesa
livre de toda ostentação,
que há de subir a um trono amargo,
como todos os tronos são!
A que crescera entre as intrigas
de validos, nobres, criados,
a que conversara com os santos,
a que detestara os pecados!
A que soube de tanto sangue,
por engenhos de altos estrados,
quando a nobreza sucumbia,
nos fidalgos esquartejados!
A que vira o pasmo do povo
e a estupefação dos soldados...
A que, amarrada em seus protestos,
pusera silenciosos brados
em grandes lágrimas abertas
nos olhos, para o céu voltados...
A que um dia fora aclamada,
envolta em vestes lampejantes,
onde o que não fosse ouro e prata
era de flores de brilhantes...
A que de olhos tristes mirara
paisagens, miltidões, semblantes,
sentindo a turba alucinada,
em vãos transportes delirantes,
sabendo que reis e reinados
são sempre penosos instantes...
A que em missal e crucifixo
a mão pusara, e aos circunstantes
fizera ouvir seu juramento,
sob estandartes palpitantes!
A que mandara abrir masmorras,
a que desprendera correntes,
a que escutara os condenados
e libertara os inocentes;
a que aos sofredores antigos
levava consolos urgentes;
a que salvava os desvalidos,
a que socorria os doentes;
a que dava a comer aos pobres
com suas mãos clementes;
a que chorava pelas culpas
de seus mortos impenitentes,
e suplicava a Deus piedade
para seus ilustres parentes!...
A que se preservara isenta
sobre os desencontros humanos:
sem soldados e sem navios,
entre os irados soberanos
de Espanha, de França e Inglaterra
e os rebeldes americanos
- com os olhos além deste mundo,
nessa evasão de meridianos
que não compreendem os ministros
- e muito menos os tiranos -
de quem vê na terra a falência
de todos os mortais enganos...
A que achava, no ódio, o pecado.
A que achava, na guerra, os danos...
A que tentara erguer-se a esferas
de Arte, de Ciência e Pensamento...
A que ao serviço de seu povo
dedicara cada momento...
A que se acreditara livre
de qualquer decreto sangrento...
- quando os horizontes moviam
grandes ondas de roxo vento;
- quando em cada livro se abriam
outras leis e outro ensinamento;
- quando o tempo da realeza,
em súbito baque violento,
desabava das guilhotinas,
sobre um grosso mar de tormento.
Ei-la, sem pai, marido, filhos,
confessor, - ninguém - acordada
em seu Palácio, à densa noite
erguendo voz desesperada,
perguntando pelo seus mortos,
pela sua ardente morada...
Ei-la a sentir o Inferno vivo,
a família toda abrasada,
e os Demônios com rubros garfos,
esperando a sua chegada
E seu corpo já transparente,
e já dentro dele mais nada.
E os corcéis da Morte e da Guerra
a escumarem na sua escada.
Ei-la a estender pelas paredes
sua desvairada figura...
A que, embora piedosa e meiga,
pelo poder da desventura,
degredava e matava - longe -
com sua clara assinatura...
Ei-la aos gritos, à sombra verde
dos jardins de aquosa frescura.
Clama por ela Inconfidentes
que a funda masmorra tortura.
E ela clama aos ares esparsos...
E a Liberdade que procura
é por flutuantes horizontes,
no fusco império da loucura.
Ai, a neta de D. João Quinto,
filha de D. José Primeiro,
presa em muros de fúria brava,
mais do que qualquer prisioneiro!
- Terras de Angola e Moçambique,
mais doce é o vosso cativeiro!
- Transparentes, vossas paredes,
prisões do Rio de Janeiro!
Ai, que a filha da Marianinha
jaz em cárcere verdadeiro,
sem grade por onde se aviste
esperança, tempo, luzeiro...
Prisão perpétua, exílio estranho,
sem juiz, sentença ou carcereiro...